
“Quem pegar esse desenho guarde com carinho”.
A busca pela beleza é humana, moderna e eterna. Eu a encontrei na favela Três Marias, num barraco feito de lixo. Descobri em uma pintura de esmalte sintético brilhante sobre lata de óleo de Antônio Roseno de Lima, na época com 65 anos de idade – nordestino analfabeto, doceiro da Estação da Luz, fotógrafo, pintor, diabético que “sofre dos nervos” e sorri feito criança.
Roseno é um choque. Significa a possibilidade da arte. Mais: a possibilidade da pintura. Residente sobrevivência. Pintura crua, bruta, original. Poesia no lixo. Lixo poético.
Parecia impossível imaginar que, na extrema pobreza, alguém se sentiria compelido a produzir alguma coisa que não fosse a busca da sobrevivência. Mas Roseno parte de um ponto zero da emoção frente à beleza, “fundando” seus trabalhos pela necessidade de estabelecer uma relação prazerosa com o mundo.
Sua força primitiva e selvagem preenche um vácuo no círculo artístico, em que a arte moderna vira instituição, se academiciza. Ele tem uma liberdade de fazer o quiser que ninguém tem; inventando e tentando, esse artista brasileiro procura no lixo a matéria de sua poesia.
“Queria ser um passarinho para conhecer o mundo inteiro”, “Sou um homem muito inteligente” são frases constantes na arte de Roseno que tocaram a mídia paulistana e lhe proporcionaram quinze minutos de fama nos anos 90. Nenhum outro artista plástico do interior logrou tal efeito.
Os quinze minutos se passaram, mas a emoção de se conhecer um artista singular, de uma pura, crua e comovente linguagem, permanece. E é luxo só.
Antonio Roseno de Lima nasceu em Alexandria, Rio Grande do Norte, em 1926. De sua cidade natal, como tantos outros, foi para o centro-sul do Brasil fugindo da seca, e jamais fez o caminho de volta. Veio para São Paulo deixando mulher e cinco filhos, sonhando em trabalhar e ganhar muito dinheiro.
Em 1961, aos 35 anos de idade, fez um curso de fotografia e passou a exercer o ofício registrando o cotidiano de crianças, além de aniversários e casamentos, e as fotos logo ganharam as nuances de seus traços.
Mudou-se para a favela Três Marias, em Campinas, em 1976, e viveu ali até a sua morte em junho de 1998, em um barraco miserável, pintando sobre uma mesa abarrotada de papéis e objetos, onde também comia e contava o dinheiro que recebia das crianças da favela em troca de doces.
Tinha compulsão pelo registro de seu cotidiano em tudo que poderia ser utilizado, trabalhando em séries nas quais repetia a mesma figura inúmeras vezes, usando sempre de materiais precários: pedaços de latas retirados dos entulhos, papelões, madeira, o esmalte sintético das sobras das latas utilizadas para pintar portas e janelas encontradas no lixo. Sua obra contém códigos que permeiam todo o processo criativo, em um minucioso exercício artesanal, com destaque para a assinatura A.R.L., tão cara a um artista semi-analfabeto.
Mesmo com o apadrinhamento do professor Geraldo Porto, participou de poucas exposições, sendo a primeira individual na Casa Triângulo em São Paulo em 1991, seguida pela coletiva “A pintura em Campinas: O contemporâneo no Centro de Informática e cultura” em 1992. Ainda fez uma individual na Cavin Morris Gallery em Nova Iorque em 1995, mesmo ano em que a grife Fórum comprou-lhe 12 imagens para compor sua agenda anual.
Uma grande coleção das suas melhores fotografias está no Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas e suas pinturas entraram no acervo de importantes museus, como a famosa “Collection de l’Art Brut”, de Lausanne, Suíça, e o Museu Haus Cajeth, em Heidelberg, na Alemanha.
A coleção aqui apresentada pertence à Fundação Casa da Arte Brasileira.
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